Metaversos do espaço

Arquitetura e a Suspensão Voluntária da Descrença

Esse ensaio é a Parte 2 de uma série sobre Arte e Metaversos. Para acessar a parte 1, sobre metaversos e a história da arte, clique aqui. Para a Parte 3, sobre metaversos na cultura popular, clique aqui.

“Somos chamados a ser os arquitetos do futuro, não suas vítimas.”

Buckminster Fuller

Os metaversos se enquadram na categoria da arquitetura. Isso pode não parecer óbvio a princípio, já que seus criadores programam e desenvolvem mundos inteiros – não apenas edifícios -, que são “construídos” não de aço, madeira e pedra, mas de pixels e códigos. Porém, uma compreensão verdadeira e profunda do que a arquitetura realmente é pode nos ajudar a entender onde os metaversos se encaixam na história da arte. E por que eles estão deixando de ser uma referência apenas da cultura pop de ficção científica, para se tornar uma realidade – ainda que virtual -, que parece prestes a ser o próximo grande passo no entretenimento e na alta cultura.

METAVERSOS E ARQUITETURA

Para os criadores de metaversos, há três componentes principais a serem considerados. Seja o espaço ocupado pelo jogador, utilizando óculos VR, uma sala, um edifício ou uma paisagem, as áreas em que a pessoa pode se mover devem ser definidas. A palavra “definir” vem do latim, definire, que significa “delimitar ou limitar”. Estabelecer perímetros significa determinar aonde as pessoas não podem ir, as “paredes” em torno do espaço de manobra, tanto quanto o que pode ser feito dentro dele.

O primeiro passo é desenhar aquilo que os programadores de metaverso chamam de “ambiente”, que representa os espaços que um jogador pode explorar – a área de jogo. Dentro dessa área de jogo, o designer então incorpora “acessórios”, elementos que dão identidade ao espaço e que podem ser instrumentos com os quais o usuário pode interagir. O passo final é construir uma “esfera”, que funciona como uma biosfera visual  – aquilo que pode ser visto além do campo de jogo, o “ambiente”, e que colabora para que o espaço pareça real. Pode ser um céu estrelado, árvores distantes, uma paisagem marítima no horizonte. É um cenário que está além do espaço interativo, mas que ajuda a estabelecê-lo e a torná-lo realista.  O que faz com que tudo isso pareça real, e não produzido pelo homem, é a integração naturalista da luz e seu contraste, a sombra.

Acessórios dentro do workshop criado para os ambientes do VFXRio na plataforma Spatial.io

Levando-se isso em consideração, tanto o “ambiente” quanto a “esfera” são elementos arquitetônicos. A “esfera” é o plano de fundo, e o “ambiente” é a área definida para movimento e jogo. Em ambos os casos, o espaço funciona como uma entidade e tem uma atmosfera que é inconscientemente “lida” pelo jogador. O “ambiente” poderia ser a praça de uma cidade, iluminada por postes, ladeada de prédios geminados, enquanto a “esfera” seria aquilo que vemos através das janelas desses edifícios. Eles influenciam a maneira como o jogador se sente no espaço, antes que qualquer coisa aconteça, antes mesmo que ele dê o primeiro passo virtual. Isso também influencia como o jogador irá se comportar, o que, por sua vez, incentiva os outros jogadores.

Segundo o arquiteto, inventor e filósofo Buckminster Fuller, “somos chamados a ser os arquitetos do futuro, não suas vítimas”. Ele vislumbrou um mundo em que “a industrialização se move, de maneira rápida e transcendental, para o planejamento consciente do homem”. Em outras palavras, a invenção humana molda o futuro, e a tecnologia possui potencial absoluto.

“The Shining” Warner Bros.

CENÁRIOS DE FILMES COMO PROTOMETAVERSOS

Stanley Kubrick serve como um bom paralelo cinematográfico. Ele costumava criar os espaços – os cenários de seus filmes – bem antes da chegada dos atores, produzindo emoções por meio da cenografia, que é um tipo particular de arquitetura temporária. Em O Iluminado, o hotel mal-assombrado é um personagem da história tanto quanto aqueles interpretados pelos atores. O “ambiente” consiste nos quartos do hotel e no labirinto de sebes atrás dele. E nada mais – parte do enredo é o fato de todo o resto estar coberto por neve, deixando os personagens trancados  dentro do “ambiente” e sem contato com o resto do mundo (a “esfera”). O espaço é apresentado, refletindo a sua própria “personalidade”, bem antes de a história se desenvolver.

Movie Director Federico Fellini on the set of Casanova on July 10, 1975

Consideremos o Cinecitta, um enorme e elaborado estúdio cinematográfico – com cerca de 400 mil metros quadrados –, composto por diversos cenários ajustáveis, nos quais os filmes eram realizados. Era uma cidade (como sugere o nome, que se traduz justamente como Cidade do Filme) dedicada a espaços fictícios e filmes. Ele foi construído por Mussolini, durante o período fascista da Itália, e inaugurado em 1937, sob o slogan “O cinema é arma mais poderosa”.

Os primeiros filmes realizados lá foram concebidos como propaganda pró-fascista, mas esses, felizmente, acabaram por cair no esquecimento. O estúdio ficou mais conhecido pelo que foi produzido durante a era do diretor italiano Federico Fellini, que trabalhou, na década de 1950, em muitos dos cerca de 3000 filmes feitos lá, dentre estes, 47 vencedores do Oscar. Décadas antes do advento do metaverso, o Cinecitta foi um lugar onde universos alternativos foram projetados e construídos, e com o qual atores interagiram, para “transportar” o público dos filmes para outros tempos e lugares por meio da magia do cinema. Um metaverso é um espaço criado artificialmente, onde uma narrativa contínua pode acontecer. Estúdios cinematográficos criam proto-metaversos que são vivenciados por meio dos filmes neles realizados, diferentemente do que pode ocorrer hoje, quando espaços podem ser habitados virtualmente. O metaverso contemporâneo é aquele em que você, o espectador, pode entrar e com o qual pode interagir.

Vitral de la Iglesia de Hamelín

O flautista de Hamelin é um programador de metaversos. As pessoas seguirão sua música, se ele tocar bem o suficiente. O público são as crianças que são atraídas a seguí-lo, assombradas pela arte que ele cria. Ela deve  ter qualidade e, então, torna-se um catalisador. Aquilo que a câmera escura fez pelos artistas da Renascença, ajudando-os a criar, de forma mais fácil e confiável, um reflexo da realidade em suas pinturas, a programação de metaversos faz pelos espaços arquitetônicos virtuais. Os espaços dos metaversos são os novos catalisadores. Vimos, no passado, como um artista pode ilustrar uma filosofia. O pintor surrealista René Magritte influenciou o filósofo francês Michel Foucault, como visto no livro de Foucault sobre a pintura de Magritte Ceci n’est pas une pipe. Agora, os programadores de metaverso são os artistas que representam teorias, como Simulacros e Simulação (1981), de Jean Baudrillard, que teorizou metaversos e avatares muito antes de os computadores serem capazes de criá-los.

Meu Tio (1958), de Jacques Tati

O que os espectadores mais lembram do filme Meu Tio (1958), de Jacques Tati, é a casa em que o protagonista de 9 anos vive, Vila Arpel. Ela foi construída especialmente para o filme, projetada mais pelo estilo do que pela funcionalidade – o oposto das casas em que a maioria de nós vive. Tati disse, certa vez, “linhas geométricas não produzem pessoas agradáveis”, e, assim, a Vila Arpel foi feita para surpreender e encantar com sua charmosa “afuncionalidade”: a mobília é bonita de olhar, ruim para sentar, os eletrodomésticos são tão barulhentos que mal é possível ouvir-se a si mesmo, os degraus são dispostos de forma absurdamente distante. É uma terra de fantasia.

Sampling the convergent rays at multiple vantage points. Adapted from Gibson (1966).

Tati estava mais interessado em como os edifícios reais podem influenciar seus moradores e na extensão da “Teoria ecológica da percepção” de James Gibson, do que em tentar prever como os seres humanos viveriam no futuro. A teoria de Gibson é aquela em que o observador “envolve-se produtivamente com o ambiente por meio do movimento e da percepção visual… o ambiente não é mais percebido como um objeto observado ou uma “coisa”, mas como “a possibilidade de um estímulo que tem a qualidade de oferecer significado ao observador, incentivando-o a responder produtivamente e a se engajar com o ambiente. Gibson desenvolveu essa teoria enquanto trabalhava com pilotos de caça na II Guerra Mundial, mas ele também poderia estar escrevendo sobre metaversos.

Os metaversos também podem ser preenchidos com objets à réaction poétique (objetos que provocam reações poéticas). Consideremos o romance Às avessas (1884), de J.K. Huysmans, que conta a história de um homem idoso excêntrico que considera as pessoas horríveis e decide construir uma casa para se refugiar na velhice e nunca mais sair. Mas a casa deve ter nela tudo aquilo que ele pode um dia desejar, incluindo detalhes e objetos que despertem sua memória sensorial dos momentos preferidos de seu passado, de modo que ele precise apenas olhá-los ou usá-los para ser transportado virtualmente para pontos cruciais de sua vida.

Cada um desses itens – sua tartaruga de estimação cujo casco ele incrustou de joias, um jardim de plantas tropicais venenosas e uma variedade de aromas que ele cheira em ordens específicas, recriando odores que provocam lembranças de momentos e de pessoas que ele gostaria de recordar – são como “acessórios” em um metaverso. A pessoa que cria um metaverso pode colocar qualquer coisa em qualquer lugar, sem considerar custo ou lógica, já que tudo são pixels e códigos.

Tudo isso foi elevado a um outro patamar pelo diretor Alejandro G. Iñarritu, em seu filme Carne e Areia, ganhador do Oscar 2017. Nesse curta-metragem, ele utilizou a realidade virtual para humanizar refugiados, ao permitir que o público entrasse no mundo dos refugiados como avatares – personagens virtuais que eles “interpretam”. É a versão literal do ditado “calçar o sapato do outro”. Enquanto algumas pessoas temem que a realidade virtual seja desumanizante, uma vez que as interações com outros seres humanos são feitas por meio de computadores e de representações virtuais do outro, esse é um forte contra-argumento de que a realidade virtual pode, na verdade, ser humanizadora.

Mars House – the first NFT digital home – sells for $512,000

METAVERSO COMO ARQUITETURA PROPRIAMENTEDITA

Em março de 2021, a artista digital Krista Kim vendeu a primeira casa como NFT (token não fungível) por mais de meio milhão de dólares. Tratava-se de um metaverso, um espaço digital em 3D, através do qual um jogador, usando óculos VR ou um aplicativo de realidade aumentada (AR), pode se mover e com o qual pode interagir. Mas é no formato de uma casa, chamada Casa de Marte. Agora, o comprador controla o acesso a ela – mantendo-o apenas para si, ou permitindo que outros também a explorem. Ela foi criada durante o confinamento da Covid-19, em 2020, dando a Kim a chance de interagir com pessoas “viajando” por uma experiência virtual mesmo que seus corpos não pudessem  sair de casa.

Softwares que permitem a criação de espaços virtuais são populares entre crianças e adultos. Minecraft é, de longe, o videogame mais popular já inventado e consiste, essencialmente, na utilização, pelos jogadores, de blocos digitais para construção de estruturas – como uma versão digital do Lego. Occupy White Walls oferece a mesma função, mas de uma maneira mais realista e com foco no projeto e na construção de galerias de arte, por jogadores que depois as preenchem com réplicas digitais de obras de arte reais.

Desde os arquitetos de edifícios reais até os de cenários cinematográficos e, agora, os programadores de espaços virtuais, os metaversos representam a mais recente vanguarda na união da interação humana com o espaço e a suspensão voluntária da descrença.

Matteo Moriconi
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Presidente da Associação Brasileira
de Tecnologia Visual

em colaboração com Noah Charney – professor de história da arte e especialista em falsificação e roubo de belas artes.