O Sorriso do Caos

Marco Lucchesi - (publicado no Museu Virtual de Arte Brasileira em 1997)

A presença dos fractais nesses últimos anos só tem feito aumentar . Quem não se lembra do filme Jornada nas Estrelas II ? A paisagem do planeta Gênesis apresenta uma base fractal. Assim também ocorre com as luas de Endor e com a Estrela da Morte, no conhecido O Retorno de Jedi. É talvez um dos grandes momentos em que a ciência, a cultura e a arte tenham encontrado um ponto de convergência. Basta folhear o belíssimo volume The Beauty of Fractals, de Heinz Peitgen e Peter Richter e reconhecer os limites cada vez mais flutuantes do saber. No Brasil, Kollreuter e Roberto Moriconi associaram em suas pesquisas a dimensão de Mandelbrot. Podemos falar de uma quase onipresença dos fractais no pensamento dos anos 80 – 90. Tão importante quanto a teoria da relatividade e da física quântica, as grandes marcas do século XX.

A primeira sequência inteiramente em computação gráfica (CG) em um filme. A ILM colaborou com a divisão de computação grafica da Lucasfilm para criar a “Sequência Gênesis”, apresentando um plano contínuo de um planeta sendo transformado em um ambiente habitável adequado para a vida. (1982)

A esquerda obra de Roberto Moriconi: Volume Energetico – serie: Bioformas – visual concert – em aço e luz, 1992 (Foto: Luiz Garrido) ao lado Maestro Koellreutter e  sua partitura: busca por “uma nova escuta, de uma música nova” — (Foto: Cleo Velleda)

Objetos Fractais , publicado em 1975, é um livro atraente, embora, muitas vezes, árduo. Acontece em primeira pessoa e não dispensa imagens. A história da matemática parece “culminar” nas descobertas de Mandelbrot. Como Aristóteles, o da metafísica, diante dos pré-socráticos. Como se tudo concorresse – aperfeiçoando-se – para ele. Autores esquecidos são reconvocados, Obras jamais compiladas, outras desconhecidas. Mandelbrot tornava-se um arqueólogo da matemática. Mas, apesar dessa atitude não tradicional, geradora de diversas discussões, o livro se impôs. Tornou-se um clássico. Todo seu fascínio dependia da análise do caos e de sua maravilhosa abrangência. Mandelbrot passeia livremente pelas crateras da Lua, pela distribuição das galáxias, pela ramificação dos brônquios e pelo litoral da Inglaterra. Quase as aventuras de um Júlio Verne nos mares da ciência. Na Ilha de “Compléxia”. Ou melhor, na Ilha de Mandelbrot.

Jonathan Swift, nas viagens de Gulliver, sabe criticar uma tradição que remonta a Euclides e que tanto influênciou a geometria: “Para exaltar a beleza de uma mulher, ou de qualquer outro animal, descrevem-na em losangos, círculos, paralelogramas, elipses e outros termos geométricos”. Até hoje aprendemos na escola que tanto faz desenhar bem ou mal um círculo. Se temos o raio e sabemos que a área do círculo é igual a A = π . r2., tudo se resolve. Não raciocinamos em termos de um círculo, mas do Círculo, de sua idéia. Mas, como lembra Mandelbrot, as nuvens não são círculos. A terra não é lisa. As montanhas não são quadrados. E a Idéia não está no mundo. Onde começa o caos, a ciência clássica pára. Um verdadeiro dualismo platônico.

Micromegas de Voltaire é uma obra satírica e filosófica que narra a jornada de dois gigantes, um de Sirius e outro de Saturno, em busca de compreender o mundo e a humanidade. Escrito por Voltaire, este conto provocante explora temas como a relatividade, a vaidade humana e a busca pelo conhecimento. Uma obra que desafia as noções convencionais e convida à reflexão. (escrito em 1752).

Em Micrômegas, de Voltaire, presenciamos o horror geométrico do habitante de Saturno, logo ao chegar na Terra: “Tudo aqui parece estar no caos: vede todos esses regatos, não há um que corra em linha reta, estes charcos não são redondos, nem quadrados , nem ovais, nem de nenhuma forma regular”. Mandelbrot, contudo, substitui o horror pelo assombro. Era o fim da previsibilidade determinista, Laplaciana. O universo pareceu-lhe – além e aquém de Saturno – um multifractal. Uma teia de auto-semelhança em escalas diversas. Esta parecia ser a chave , a ordem subjacente ao caos. Os fractais matemáticos ou naturais não apenas dispõem de estrutura em todas as escalas, mas possuem – nos limites do razoável – a mesma estrutura em todas as escalas. Tal como podemos observar na Ilha de Mandelbrot, onde moram todos os conjuntos de Gacton Julia, em escala infinitesimal, revelados por zooms.

Imagem da exposição “Olhar 3D” com curadoria de cientistas e artistas do Brasil e da França no Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST. A Conjectura de Poincaré é uma importante conjectura sobre topologia. Ela afirma que a esfera é o único espaço fechado de dimensão 3 onde todos os caminhos podem ser encolhidos até chegarem a um simples ponto. A conjectura foi formulada por Poincaré por volta da virada do século 20. source: https://olhar3d.impa.br

Com a palavra Mandelbrot: “Para ser mais preciso, os Objetos Fractais propunham-se não só a descrever as montanhas , as nuvens e as árvores e os aglomerados de galáxias, mas também descrevê-los de uma forma suficientemente perfeita para permitir imitar imagens do real por meio de fórmulas. Pouco depois, no entanto, no meu livro inglês, verificava (lendo Poincaré) que as mesmas técnicas podiam também ser aplicadas em dinâmica”. Aos poucos o autor dava-se conta do aspecto interdisciplinar de suas hipóteses. A teia ganhava complexidade maior. Também chegava ao corpo. Por exemplo, a descrição exponencial das ramificações dos brônquios não resistia diante de uma visão fractal. Assim também com o sistema colector urinário. O canal biliar no fígado. O ritmo dos batimentos cardíacos. O mundo tornava-se belo por essa estranha rede complexa. Já não era mais a simpatia de Paracelso, a correspondência de um Ficino, os números de Pitágoras, o alfabeto de Galileu, o deus pensado, como dizia Farias Brito, ao comentar Espinoza (“deus sive natura”).

Fonte: Pascal Cotte / artnet News

A estrutura habita a complexidade. Sob a desordem, a ordem. Os laços do universo parecem adequar-se em escala. Sob a a diferença, a identidade. Mas, além desse horizonte, sabemos plenamente que o sorriso de Jeanne Hebutèrne, de Modigliani, ou que a Cigana, de Matisse, guardam a mesma poesia de Mona Lisa. Tudo será regulado pelo fantasma de Euclides. Um sorriso, apenas.

Agradecimentos a Marco Lucchesi pela colaboracao do Manifesto O Sorriso Do Caos publicado no Museu Virtual de Arte Brasileira em 1997. www.museuvirtual.com.br

Marco Americo Lucchesi é um premiado poeta, escritor, romancista, ensaísta, tradutor, historiador e esperantista brasileiro, sétimo ocupante da cadeira nº15 da Academia Brasileira de Letras (desde 2011). É também professor titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (source: https://pt.wikipedia.org/wiki/Marco_Lucchesi)