MANIFESTO MULTIVISION: REFLEXOS DA IMAGINAÇÃO HUMANA
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Em algum momento do século IV a.C., Platão escreveu uma alegoria da condição humana que, surpreendentemente, parece prever os dias de hoje. Ele supôs que a experiência humana não era real. Em vez disso, nós perceberíamos uma “sombra” ou simulação da realidade filtrada por nossos sentidos. Na analogia de Platão, nós, humanos, estávamos situados dentro de uma caverna, de costas para a entrada, com os rostos virados para a parede dos fundos. A luz do lado de fora iluminava a realidade – digamos, um bisão passando pela entrada da caverna – e projetava uma sombra dessa realidade na parede à nossa frente. Nós podíamos ver a sombra do bisão; não o próprio bisão, mas uma projeção holográfica dele.
O “Mito da Caverna” platônico foi adotado por pensadores de todos os tipos de disciplina. Pintores da Renascença acreditavam que suas pinturas, sobretudo as cenas sagradas, não mostravam a realidade, mas uma “sombra” pintada da realidade. Uma pintura da Sagrada Família de Mantegna não nos permitiria ver efetivamente Maria, José e o menino Jesus, mas uma simulação deles. O pintor surrealista belga, René Magritte, abordou o mesmo conceito, quatro séculos depois, em sua famosa pintura “A Traição das Imagens”. A tela mostra o desenho de um cachimbo, com palavras (em um francês intencionalmente incorreto) afirmando “Isto não é um cachimbo”. Ele estava certo. Não é um cachimbo. É o desenho de um cachimbo. A “sombra” de um cachimbo, como Platão teria chamado. A pintura e seu conceito foram tão ressonantes na obra de grandes pensadores, que o filósofo Michel Foucault escreveu todo um livro sobre ela.
É uma ideia que simplesmente não desaparece, como é o caso de todos os conceitos verdadeiramente revolucionários da humanidade. Ele habita todas as formas de arte. Na música, Vivaldi buscou criar projeções auditivas das quatro estações, e Mussorgsky queria pintar imagens mentais de pinturas imaginárias, em sua famosa peça “Quadros de uma exposição”. O compositor brasileiro Heitor Villa Lobos procurou usar a música para ajudar o ouvinte a “ver” – em sua imaginação – uma paisagem virtual e imersiva, atravessada por um trem serpenteante, em sua tocata “O Trenzinho do Caipira”. Todos eles reverberam e parecem sempre atuais.
O filme de ficção científica “Matrix” transporta o mesmo conceito para o mundo digital, em que os humanos vivem em uma realidade virtual tão vívida que não sabem tratar-se de uma simulação (ideia publicada pela primeira vez no livro do filósofo Jean Baudrillard “Simulacros e Simulação”). Mas tal simulação só poderia ser desenvolvida por humanos. O paradoxo tecnológico de “Desenhando mãos” (Drawing Hands, 1948), de MC Escher, vem à mente. O desenho de uma mão desenha o desenho da mão que a desenha. Apenas escrever essa frase já deixa a mente confusa. Então, pode ser que um metaverso que pareça tão real quanto o mundo real só possa ter sido criado por pessoas no mundo real – mas quem pode garantir que essas pessoas não são também uma simulação, e que simplesmente não sabem disso?
Quando as primeiras obras de arte foram realizadas, pinturas nas paredes das cavernas, nossos ancestrais pré-históricos estavam criando sua própria realidade alternativa. O bisão que eles desenhavam na parede era uma “projeção” do bisão real que eles caçavam do lado de fora. Pablo Picasso disse, certa vez, em referência às pinturas em uma caverna chamada Altamira: “Depois de Altamira, tudo é decadência”. Isto era arte para o homem pré-histórico: capturar uma visão do real, controlá-la e projetá-la onde quisesse. O que, há 34 mil anos, era uma caverna, hoje em dia, é um monitor de computador 4k.
O conceito de uma caverna tão real que não percebemos que é uma simulação se manifestou fisicamente, em 2015, na França. A “Caverne du Pont d’Arc” é uma réplica precisa impressa em 3D da antiga caverna Chauvet – que contém pinturas tão frágeis que podem se desintegrar com a respiração humana, estando, por isso, fechada ao público.
Reconhecendo a conexão com a caverna de Platão, Werner Herzog fez um documentário chamado “A caverna dos sonhos esquecidos”, em 2010, sobre a verdadeira caverna Chauvet – onde lhe foi permitido filmar por apenas alguns dias. Poucos estudiosos podem visitar a verdadeira caverna Chauvet. Em vez disso, se quisermos experienciá-la, temos que assistir ao filme de Herzog e ver uma “sombra” digital da caverna, ou visitar a “Caverne du Pont d’Arc” e ver uma “sombra” física impressa em 3D.
Essas “sombras” são reais ou falsas? Depende da pessoa para quem você pergunta e de como ela as imagina. Pergunte o que as pessoas veem em “A Traição das Imagens”, de Magritte, e quase todas dirão: “É um cachimbo”. Pablo Picasso disse: “Arte é a mentira que revela a verdade” – a verdade sobre como nós, seres humanos, pensamos. Essa é a armadilha cognitiva na qual Magritte pretende nos jogar.
O termo “vale da estranheza” é usado para descrever objetos ou fenômenos que mexem com nossas mentes, por ocuparem a zona limítrofe entre aquilo que percebemos como real e o que vemos como uma ilusão – algo artificial, feito pelo homem. Os robôs modernos podem se parecer tanto com seres vivos que dificilmente percebemos a diferença. Pensadores contemporâneos se questionam se essa diferença sequer importa. Se a maior parte da humanidade está mais feliz dentro da Matrix, será que essas pessoas querem saber que é tudo uma ilusão?
Isso é particularmente importante nos dias de hoje, quando a internet está repleta de opções de realidade alternativa. Podemos colocar óculos de Realidade Virtual e sentir como se estivéssemos realmente sentados em um estádio de futebol, olhando para os lados e vendo outros espectadores da Realidade Virtual da forma que eles escolheram aparecer – como avatares digitais personalizados -, todos visualisando um jogo de futebol ao vivo, com jogadores reais que podem estar do outro lado do mundo. O termo metaverso faz referência a espaços virtuais que podem ser visitados online, frequentemente tão naturalistas e elaborados que parecem reais.
Os metaversos podem ser povoados por imagens digitais que percebemos e descrevemos como reais. Você pode comprar um imóvel em Decentraland, um desses metaversos online, e criar uma galeria de arte exibindo NFTs – tokens não fungíveis -, que são arquivos digitais (como jpegs ou mp3s) exclusivos, gravados no blockchain, de forma que pareça que temos propriedade sobre eles. Você não pode comprar o verdadeiro “Drawing Hands” de Escher, mas poderia comprar um NFT do desenho e pendurar na sua galeria virtual no Metaverso.
Muito disso consiste em enganar mentes que gostam de ser enganadas. Podemos confundir nossa percepção de profundidade cobrindo um dos olhos. Podemos obter a ilusão de realidade virtual usando óculos especiais. Podemos comprar um cão robótico e sentir como se tivéssemos um companheiro de verdade – estudos demonstram que idosos que têm cães robóticos desfrutam dos benefícios de uma companhia real, mesmo sem nenhum outro ser vivo por perto.
O problema com a inteligência artificial (IA) e as simulações, tanto robóticas quanto digitais, é que elas carecem de base para compreender verdadeiramente a natureza humana, particularmente, o sofrimento. Elas podem ser programadas por humanos para responder de forma humana, mas tudo o que podem fazer é imitar o que o programador lhes manda fazer. Elas não têm empatia.
Mas é aí que entra a arte. A arte é, há muito tempo, vista como espelho da condição humana. Seja o Hamlet de Shakespeare, ou o Moby Dick de Melville, ou o Guernica de Picasso, ou o Réquiem de Mozart, ou o Trenzinho Caipira de Villa Lobos, sentimos que a grande arte se comunica conosco, tanto coletiva como individualmente. Projetamos na arte nossa situação e nossos humores particulares e vemos nela nosso próprio reflexo.
É importante uma reflexão profunda sobre o metaverso, a realidade virtual e a potencial perda do lado humano da equação. Isso pode ajudar a identificar tendências futuras, na medida em que que cada novo horizonte tecnológico, supostamente inventado para trazer soluções, também cria novos conjuntos de problemas, que precisam ser resolvidos. Novos problemas trazem, simultaneamente, novas oportunidades de resolvê-los, oferecendo também uma visão sobre nossa responsabilidade social.
Devemos estar cientes das consequências da tecnologia que criamos com tanta ansiedade e rapidez. A maioria das consequências é benéfica, mas, para cada medicamento que salva vidas, há efeitos colaterais indesejados, contra os quais devemos estar prevenidos. Tudo isso é um apelo para atingirmos o equilíbrio ideal entre o que a tecnologia permite e o que ela (ainda) não pode incorporar, ou também os caminhos que a tecnologia fecha para cada porta que ela abre. Sempre que possível, devemos colocar alma nos mundos virtuais que criamos.
Para que a humanidade sobreviva, e talvez até prospere, devemos unir os elementos humanos da arte com as funções e os prazeres ilusórios do virtual.
Matteo Moriconi
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Presidente da Associação Brasileira
de Tecnologia Visual
VFXRio Live: www.vfxrio.com.br
Agradecimentos: O Manifesto Multivision: Reflexos da imaginação Humana é resultado da contínua e intensa troca de ideias com os colaboradores do VFXRio Liana Brazil e Luiz Velho. O Manifesto propõe a revisitação das idéias de Marshall McLuhan publicadas em seu livro “Understanding Media – the extensions of man”.