VFXRio LunaPark: Quero ser uma máquina
Exposição - Quero ser uma máquina - A.I. W4rhol
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“A Semiótica é, por princípio, a disciplina que estuda tudo aquilo que pode ser usado para mentir. Se algo não pode ser usado para contar uma mentira, inversamente, não pode ser usado para contar a verdade: não pode, na verdade, ser usado “para contar” nada.” – Umberto Eco, Teoria da Semiótica
“Todos sabemos que Arte não é verdade. A Arte é uma mentira que nos faz perceber a verdade ou, pelo menos, a verdade que nos é dada a entender. O artista deve saber como convencer os outros da veracidade de sua vida.”- Pablo Picasso
“Finja até que seja verdade”.- Aforismo inglês
Em diversas ocasiões, o sino parece ter tocado para a arte. O fim da arte foi previsto com a invenção da imprensa e, mais recentemente, com a popularização da fotografia. Agora, os computadores entraram na briga, e algumas almas preocupadas acreditam que o advento da arte criada com, ou por, computadores significa o fim para os artistas. Na verdade, computadores são meramente uma nova ferramenta que os artistas podem utilizar para criar. E uma ferramenta que explodiu as possibilidades do que a arte pode ser. O termo genérico para conteúdo criado ou alterado por computador é “mídia sintética”.
A ideia é que esse conteúdo é feito ou modificado de forma automatizada – um programador cria um algoritmo, e o computador faz, então, o trabalho. O termo abrange todos os tipos de dados ou arquivos, com a implicação de que o produto final pretende levar o público a pensar que é “real”, criado por humanos. Isso significa que abrange também “fake news” e outros aspectos negativos. Mas há um lado positivo, quando se trata de arte, que contempla NFTs, metaversos, arte generativa e arte AI.
NFTs são arquivos de computador únicos e insubstituíveis, cuja criação, regras e propriedade são registradas em uma blockchain. Isso torna cada NFT única e comercializável de uma forma que um jpeg aleatório, por exemplo, não é. Já houve imagem NFT vendida por 69 milhões de dólares, o que mostra que o mercado certamente existe. Metaversos são mundos virtuais, criados por artistas programadores, através dos quais os participantes podem mover-se, usando softwares e óculos de realidade virtual (VR). Arte generativa é a arte criada por computadores, com o artista programando um algoritmo em vez de utilizar um pincel. A mais recente contribuição para as possibilidades positivas da mídia sintética é a arte AI.
A Arte AI usa algoritmos de computador para, a partir de um colossal banco de dados de imagens categorizadas, criar imagens novas e únicas, baseadas em “prompts” – linhas de comando inseridas pelo criador. Os prompts estão na forma de textos, por exemplo, “foto da abertura de uma exposição em uma galeria, com o público usando máscaras cirúrgicas, reunido em torno de uma ruiva da série de pinturas Ohhh…Alright…, de Roy Lichtenstein”. O programa de AI (inteligência artificial) – sendo o Midjourney um exemplo proeminente (junto com o Dall-e e o Google’s Imagen) -, então, produz quatro imagens baseadas no prompt. Esse software permite um nível sem precedentes de fotorrealismo e apresenta um profundo nível de compreensão da linguagem.
O criador pode solicitar uma série diferente de quatro imagens, pode “aumentar” uma delas, produzindo uma versão de alta resolução, ou, ainda, pode “desenvolver” sua imagem preferida. Desenvolver a imagem – processo que chamo de “evolução generativa” – permite ao criador adicionar novas versões ou modificar o prompt a uma das imagens AI, para alterá-la, levando a AI a preparar um novo grupo de quatro imagens com base no prompt inicial e no subsequente. A AI não faz nada sem o comando do criador. Quanto mais desenvolvimento o criador solicitar à AI, mais o criador-artista terá sua invenzione na imagem final. Um exemplo disso é minha série de flores gerada no Midjourney – inspirada por Andy Warhol -, que chamo de Máquina do Amor, parte da exibição “Quero Ser uma Máquina”, dentro do metaverso. A flor muda a cada processo de geração; os prompts textuais funcionam como um acréscimo de filamentos de DNA. O que começou como uma simples flor vermelha evoluiu no decorrer de centenas de renovações, à medida que eu continuava criando novas gerações para desenvolvê-la ainda mais. Como ela evolui é uma surpresa tanto para o criador como para qualquer futuro espetador. Após inúmeras rodadas de desenvolvimento, a AI começou a adicionar corações à flor e, na imagem que escolhi como a final, escreveu a palavra “amor”.
Giorgio Vasari, padrinho da história da arte, pintor do século XVI, arquiteto e biógrafo, escreveu sobre como artistas empregam invenzione (invenção, imaginação, visualização de uma obra de arte antes de sua realização) e disegno (design ou desenho, a produção propriamente dita do trabalho imaginado). Quando se trata da arte AI, a invenzione permanece com o criador, mas o disegno é delegado ao computador. O criador das imagens ainda é um artista, mas, em vez de comandar uma equipe de assistentes humanos reais – como fazem Damien Hirst e Jeff Koons -, para produzir a arte que ele vislumbrou, o artista substitui os assistentes humanos por Inteligência Artificial. O criador ainda tem que supervisionar e fornecer feedbacks, e o trabalho artístico não estará concluído até que o ele assim determine. A AI é apenas uma ferramenta, um pincel inteligente que trabalha por meio de programação em vez de habilidade manual, para concretizar o desejo do artista. É ele que coloca a “arte” na Inteligência Artificial.
A VFXRio Lunapark é um exercício para a compreensão desse processo.
Na década de 1980, o grafiteiro de Nova York Fab-Five Freddy pintou com spray enormes latas de sopa da marca Campbell em um trem em Manhattan, como homenagem à icônica série de pinturas de latas de sopa Campbell de Andy Warhol.
Certa vez, Warhol disse “Quero ser uma máquina”. Eu interpretei isso literalmente e usei AI, juntamente com minha experiência com a VFXRio criando metaversos virtuais reconhecidos e populares, para desenvolver um novo metaverso, que funciona como um lunapark (termo europeu para parque de diversões) inspirado nas obras de Warhol, com espaços para exposições que podem ser explorados por visitantes virtuais. Também criei um avatar chamado A.I.W4rhol para assinar minhas obras de AI. Esse avatar me oferece a oportunidade de expressar e desenvolver uma ruptura artística, por meio da pesquisa da linguagem e seus efeitos na arte AI. Toda a arte e as imagens desse metaverso foram elaboradas por mim, por meio do meu avatar, utilizando o mecanismo de AI do Midjourney.
Utilizando o Midjourney para o disegno, preenchi o lunapark com imagens desdobradas em objetos e espaços que os usuários virtuais podem ver, nos quais podem entrar e com os quais podem interagir. Uma das exposições em exibição no metaverso lunapark é a já mencionada “Quero Ser uma Máquina”. Em cima de uma enorme caixa Brillo flutuante, há um terraço que foi chamado de Auditorium Brillo. Lá, pode-se ver outra exposição, “Máquina do Amor”, que consiste em uma série do que parecem ser litografias emolduradas de flores em cores vivas.
E, como qualquer coisa que o programador escolher pode ser integrada ao surreal mundo de um metaverso, você pode visitar essa exposição dirigindo carrinhos de bate-bate. Outra exposição, “Caixa de Sopa Brillo” (uma mistura das séries Sopa de Campbell e Caixas Brillo), pode ser acessada através de uma caverna dentro do metaverso, chamada Galeria Caverna de Platão. O metaverso estará em constante expansão, com novas exposições e espaços a serem explorados.
Depois de passar tantos anos desenvolvendo metaversos e pensando na semiótica, acredito que o aspecto mais importante é a experiência do usuário. Ela deve ser significativa, libertadora, inspiradora, talvez até emocionante. O termo ARG (Aternative Reality Games ou Jogos de Realidade Alternativa) melhor define essa experiência. A arte AI e o espaço do metaverso, particularmente quando explorados com óculos VR, são tão realistas que enganam os olhos – um efeito chamado trompe l’oeil – a acreditar que são reais. Uma mentira que revela a verdade – que jamais podemos confiar totalmente que aquilo que vemos é real, no sentido de sua existência no nosso mundo tangível. No filme A Origem, um personagem afirma que “uma ideia é como um vírus, resiliente e altamente contagiosa. A menor semente de uma ideia pode crescer. Pode crescer para te definir ou te destruir”. Assim é a arte AI. Ela pode parecer intimidante, um “fim da arte”, mas não precisa ser. Trata-se de um novo meio, um suporte para a imaginação. Como o filme também afirma, “Se você vai realizar a iniciação, você precisa de imaginação”.
O autor de ficção científica polonês Stanislaw Lem escreveu um livro chamado The Cyberiad, no qual ele imaginou um futuro povoado quase inteiramente por robôs que assumiram os papéis dos humanos. O livro foi publicado em 1965, décadas antes de os computadores tornarem-se onipresentes, e era surpreendentemente visionário. Um dos personagens é Elektryball, um poeta eletrônico, ou robô que escreve poesia, criado por Trurl, um “robô mago”. Trurl é conhecido como “construtor”, porque ele pode criar qualquer coisa que se queira, como um deus. É como se Lem tivesse imaginado não apenas o uso universal de robôs e máquinas em trabalhos braçais tradicionalmente feitos por seres humanos, como também o poder da AI dos “poetas eletrônicos” atuais, plataformas como o Midjourney.
O autor de ficção científica polonês Stanislaw Lem escreveu um livro chamado The Cyberiad, no qual ele imaginou um futuro povoado quase inteiramente por robôs que assumiram os papéis dos humanos. O livro foi publicado em 1965, décadas antes de os computadores tornarem-se onipresentes, e era surpreendentemente visionário. Um dos personagens é Elektryball, um poeta eletrônico, ou robô que escreve poesia, criado por Trurl, um “robô mago”. Trurl é conhecido como “construtor”, porque ele pode criar qualquer coisa que se queira, como um deus. É como se Lem tivesse imaginado não apenas o uso universal de robôs e máquinas em trabalhos braçais tradicionalmente feitos por seres humanos, como também o poder da AI dos “poetas eletrônicos” atuais, plataformas como o Midjourney.
Os limites embutidos nas atuais plataformas de AI tentam afastar os usuários do tipo de uso indevido que inevitavelmente chegará: a utilização da AI para criação fake news, sexo e violência. Por exemplo, no Midjourney, não se pode incluir a palavra “sangue” como um prompt. Entretanto, tais limitações podem ser portais para criatividade. Em 1939, Ernest Vincent Wright escreveu um romance de 50.000 palavras, “Gadsby”, sem jamais usar a letra “e”. Inspirado por ele, em 1969, Georges Perec escreveu “O Sumiço”, em francês, igualmente sem a letra “e”. Esse romance foi traduzido em oito idiomas, com os tradutores sendo obrigados a manter a ausência do “e”. Limitações podem forçar a desistência, ou estimular a busca de caminhos mais imaginativos. Os limites dos prompts da AI levam o processo criativo a um outro nível, na medida em que forçam a elaboração de ideias alternativas, para desenvolver outras imagens que possam alcançar resultados melhores.
Toda a experiência do VFXRio Lunapark é um estudo de caso sobre como levar a mídia sintética a um outro nível. Eu criei uma realidade agrupada que existe, embora apenas virtualmente. Jean-Paul Sartre escreveu sobre realidades agrupadas, elementos que aprimoram ou reforçam uns aos outros. Com isso em mente, criei jornais hipotéticos com manchetes que fazem referência a “Quero Ser uma Máquina”, obras de arte únicas para ocupar o metaverso e uma conta no Twitter para meu avatar A.I.W4rhol – cada um dos elementos da realidade (virtual) aprofundando os demais.
Andy Warhol certamente teria aprovado a arte AI, mesmo no caso de ela basear suas criações nos trabalhos do artista. Certa vez, ele pagou uma amiga por ideias de trabalhos artísticos. Ela sugeriu que ele fizesse o que mais amava: dinheiro. Ele, então, passou a produzir obras de arte, pintando e serigrafando imagens da cultura do marketing capitalista que haviam sido produzidas por outras pessoas: objetos como as latas de sopa Campbell ou as caixas de sabão em pó Brillo. Ele reproduziu à mão, com tinta, imagens produzidas em massa. Eu me baseei nessa ideia de Warhol e usei AI para criar, em um novo meio, imagens totalmente novas que evocam as de Warhol, sem duplicá-las exatamente.
Semiótica é o estudo dos símbolos e seus significados. O que criei, com a ajuda do Midjourney, foram camadas de símbolos. Elas contemplam os produtos originais produzidos em massa (sopa e sabão em pó), assim como a camada da arte de Warhol baseada neles e, agora, uma terceira camada, a arte criada por AI baseada na arte baseada em publicidade.
Cada imagem criada no Midjourney contém um código criptográfico, e o texto é sua chave. Não se cria apenas uma imagem, mas também uma atmosfera e uma noção de tempo e espaço. Por exemplo, os elementos de realidade agrupados de um anúncio de jornal antigo de “Quero Ser uma Máquina” e uma fotografia de um grupo de pessoas na abertura de uma exposição, reunidas em torno de uma mulher ruiva que parece ter saído de uma série de pinturas de Roy Lichtenstein. O resultado dessas fabricações da AI é surreal e, no entanto, parece muito real.
A AI pode criar imagens tão realistas que enganariam a maioria dos espectadores. Há perigos nisso. No presente, há uma política não oficial de que a AI não seja utilizada para reproduzir imagens de sexo e violência, mas é apenas uma questão de tempo até que a internet esteja repleta delas. O realismo que a AI cria significa que suas imagens podem ter implicações nas liberdades civis, minando a confiança do público naquilo que está vendo – mesmo quando real – por medo de acreditar em imagens fraudulentas.
Existe um grande potencial para governos ou indivíduos manipularem o público. Ao invés de uma razão para ficar longe da mídia sintética – que, uma vez já disponível, não vai desaparecer, mas apenas crescer -, isso reitera a importância fundamental de se promover seu estudo. É somente por meio de muito conhecimento e compreensão que seremos capazes de reconhecer, ou determinar, se uma imagem ou vídeo (seja 2D, 3D, imersivo ou não imersivo) é real ou não.
A primeira questão é se a imagem é real ou criada por AI, mas a segunda deve ser inevitavelmente sobre a intencionalidade. Se a intenção é causar confusão ou danos, então as imagens – reais ou falsas – são destrutivas. Se a intenção é proporcionar experiências significativas, instruir, entreter ou provocar reflexão, então a imagem ou vídeo – reais ou falsos – são benéficos ou, pelo menos, não prejudiciais.
Os limites que mencionei estão presentes nas principais plataformas de arte AI, mas isso não irá deter aqueles que quiserem contorná-los. E é praticamente impossível determinar, em um simples olhar, que as imagens são ficcionais, se o criador incluir um prompt solicitando imagens que pareçam fotografias ou recortes de jornal. Quando usada para entretenimento, beleza e passatempo, a tecnologia é um maravilhoso playground de possibilidades. As “mentiras” ou imagens geradas por computador são uma boa diversão. Mas existe a possiblidade de que a tecnologia seja utilizada para manipular e propagar notícias falsas. Atualmente, pode ser impossível para os espectadores determinar se a imagem é “real” ou gerada por AI, principalmente quando se trata de imagens em estilo fotojornalístico. A única opção é a lógica: isso pode ser real?
As ferramentas de AI constroem um estado de sonho lúcido para seu público. Hipoteticamente, em um futuro próximo, esse processo pode ser capaz de ensinar as máquinas a sonhar. Isso – espera-se – levará a uma versão melhor do HAL 9000, o infame computador de 2001: Uma Odisseia no Espaço, projetado para reproduzir os erros humanos. O que é importante agora, nos primórdios da mídia sintética, é educar o público sobre como usá-la para criar experiências significativas, um movimento para o uso benéfico da realidade virtual (VR) – tão poderosa por ser capaz de mudar nossa própria percepção.
Não é apenas o público que pode ser obrigado a fazer uma análise em retrospectiva para determinar se uma imagem é real ou produzida por AI. Artistas utilizando AI também terão que aprender a fazer engenharia reversa de seus processos tradicionais. Eles deverão definir e articular o que querem e deixar que o algoritmo crie para eles, em vez da abordagem tradicional de criar uma obra de arte e, talvez depois, articular a intenção por trás dela para o público.
A arte do metaverso e da semiótica da construção deve criar algo que pareça real mesmo que seja surreal.
Podemos apenas imaginar o que Warhol estaria criando se estivesse vivo hoje, com acesso à AI…
Matteo Moriconi
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Artista Digital
Presidente da Associação Brasileira
de Tecnologia Visual – ACM Siggraph
Agradecimentos: O Ensaio – Quero Ser uma Maquina é o resultado da contínua troca de ideias com os colaboradores do VFXRio:
Liana Brazil e Luiz Velho.