A Arte na Inteligência Artificial

Um Motor para a Imaginação (Parte 3)
por Matteo Moriconi em colaboração com Luiz Velho, Noah Charney e Bernardo Alevato

A questão dos direitos autorais representa outro ponto de interrogação. Imagine uma enorme biblioteca disponível para todos, contendo todo o conhecimento de Leonardo ou Picasso (ou melhor, e Picasso… e todos os artistas que já viveram), manifestado na arte que criaram. Você não está infringindo os direitos desses autores, porque está criando obras “no estilo de” um artista ou movimento. Desde que não tente apresentar essas obras como um originais, você não está desrespeitando nenhuma lei. O que você não deve fazer é assinar o trabalho, ou alegar que ele foi realizado por alguém cuja autoria elevaria o valor da obra. Para dar um exemplo contemporâneo, você não deve usar AI para criar uma obra no estilo do artista digital Beeple, alegar que é dele e tentar vender uma NFT do trabalho. A imagem pode de fato parecer algo que Beeple faria, e suas NFTs já foram vendidas por milhões, então a tentação existe. Mas é aí que a Arte AI pode se tornar ilegal. A etiqueta atual diz para sempre deixar clara a autoria e o nome da plataforma de AI que você utilizou, para que não haja dúvidas que a imagem foi produzida por AI. Essa atitude é moral e honesta – não seria legal enganar o público, fazendo-o pensar que você dedicou tempo para realizar uma pintura a óleo completamente sozinho, quando, na verdade, ela foi criada por uma AI em apenas alguns minutos.

Greg Rutkowski, o artista de fantasia mais requisitado nas solicitações de prompts de AI até hoje, não está contente por ser tão popular, pois teme que isso diminua o valor do que ele cria à mão. O fundador do Midjourney, David Holz, descreveu a Arte AI como “um motor para a imaginação”. A ferramenta certamente estimula a imaginação, mas também levanta questões sobre ética, direitos autorais e segurança.

Não é possível registrar direito autoral para um estilo artístico, mas, antes do uso de AI, o desenvolvimento ao longo do tempo da habilidade de um artista funcionava como um direito autoral. Se um artista treinasse para ser capaz de pintar como Greg Rutkowski e dedicasse o mesmo tempo que ele à pintura, estaria certamente intitulado a criar o que desejasse – desde que não enganasse o público a pensar que sua criação era de Rutkowski, pois isso seria um ato de fraude e falsificação. Emular o estilo de outros artistas é a maneira pela qual todos os artistas praticaram ao longo da história. Você pode até mesmo fazer uma cópia manual idêntica do trabalho de outra pessoa, desde que não tente levar ninguém a pensar que se trata de um original do artista famoso.

Greg Rutkowski

A AI complica a situação, especialmente porque sua natureza inteiramente digital e automatizada significa que o criador da imagem não precisa de prática, habilidade ou dedicação de tempo. O software faz tudo isso por ele. O software entra com a “prática” e a “habilidade”, embora o ato de “vasculhar” seja visto por alguns como um roubo, conforme descrito em  artigo da revista Technology Review. Em termos práticos, desde que o criador de uma imagem AI no estilo de um artista conhecido não alegue que o trabalho foi realizado pelo artista em questão, há pouco que possa ser feito legalmente. Trata-se de uma questão moral. Pode haver litígio, entretanto, se as criações de AI forem monetizadas. O que acontece quando alguém faz uma obra no estilo Rutkowski e a vende como um NFT? O anonimato, considerado uma vantagem  por muitos usuários de criptografia (que espelham os comerciantes e colecionadores de NFTs) pode se tornar um escudo atrás do qual os fraudadores podem se esconder. E, por exemplo, publicar uma história de fantasia repleta de ilustrações no estilo Rutkowski, feitas gratuitamente e em minutos por uma ferramenta AI, em vez de pagar a um ilustrador, que demoraria semanas para produzir imagens que, para o leitor, seriam praticamente indistinguíveis daquelas feitas pela AI? Pode não ser efetivamente um crime, desde que o editor não diga que as ilustrações são de Rutkoswski, mas é uma questão moral.

Como acontece com qualquer invenção, a maioria das pessoas irá utilizá-la de maneira apropriada, mas, inevitavelmente, haverá maçãs podres no cesto. Na medida em que a AI produz, em questão de minutos, o que poderia levar semanas ou mais para ser feito por uma pessoa – se ela tiver a capacidade de fazê-lo -, há o risco de que isso promova a preguiça. Além disso, há casos em que a AI é utilizada para trapacear.

Embora esse artigo enfoque a Arte AI, é importante traçar paralelos com os textos de AI, como aqueles produzidos pelo ChatGPT, um chatbot capaz de produzir textos bem escritos, analíticos e interessantes. Ele pode ser ótimo para usos casuais, mas é um pesadelo para professores. Um estudante pode apresentar um trabalho sobre Moby Dick sem jamais ter aberto o livro, apenas solicitando ao ChatGPT que o produza para ele. Isso já aconteceu, como demonstrado em um artigo do New York Times. Um professor identificou que um trabalho sobre religião apresentado em sua turma era  infinitamente superior a todos os demais – porque havia sido escrito pelo ChatGPT. O aluno confessou imediatamente, mas outros tentarão usar a mesma tática e serão mais espertos. Os acadêmicos têm algumas ferramentas tecnológicas para detectar plágios. O iThenticate vasculha textos online e em diversos livros, para procurar por palavras que pareçam ter sido copiadas diretamente. O problema é que isso não funciona com trabalhos do ChatGPT, uma vez que seu conteúdo não é copiado palavra por palavra de uma fonte preexistente – assim como a Arte AI não é uma cópia direta, total ou parcial, de nenhuma obra de arte preexistente.

Para combater isso, as instituições educacionais estão introduzindo a prática de redações supervisionadas, como, por exemplo, escrever os primeiros rascunhos em sala de aula, usando computadores equipados com softwares que limitam o que pode ser acessado. Alterações posteriores, feitas em casa, estarão sujeitas a testes periódicos em que o estudante deverá explicar as mudanças realizadas. Trata-se de uma medida complexa, mas, no momento, parece ser a única maneira de prevenir o uso de AI para a realização de trabalhos de casa.

No entanto, propor questões para um chatbot de AI pode ser divertido e educativo. Pedir ao ChatGPT para escrever um ensaio sobre Moby Dick – se você não apresentar o texto para obter uma nota e alegar ser o autor – pode ser esclarecedor. A AI saberá coisas sobre o assunto que você não sabe, conhecimento extraído do ruído, e poderá chegar a conclusões perspicazes e fazer observações pungentes, que oferecerão melhor compreensão sobre o tema. Utilizar a AI como ferramenta para se entreter e se educar é algo positivo. As maçãs podres que recorrem a ela por preguiça ou para trapacear são inevitáveis, mas não devem nos desvirtuar do imenso bem que pode vir dessa câmera obscura virtual, que busca a luz do conhecimento no meio do ruído e a projeta da maneira que solicitamos.

Acredito que, seguindo essas diretrizes gerais, não estamos declarando o fim dos ilustradores e artistas gráficos, embora eles talvez percam alguns trabalhos para indivíduos ou negócios de baixo custo que irão se satisfazer com um logotipo ou uma imagem feita por AI, em vez de criada por uma pessoa. Como disse o criador do Midjourney, David Holz, “Nós vemos essa tecnologia como um motor para a imaginação”. Não é provável que ela seja utilizada para gerar produtos finais, mas sim como um estímulo à imaginação. Por exemplo, uma companhia ia lançar uma nova linha de geleias e queria criar um logotipo. A equipe inseriu prompts no Midjourney, que lhes ofereceu quatro imagens para escolher. Eles selecionaram uma delas e a aprimoraram, adicionando mais prompts, que resultaram em quatro novas imagens. Eles não usaram nenhuma dessas imagens, mas as aproveitaram como indicadores da “atmosfera” que buscavam, para criar seu logotipo final, desenhado por eles mesmos, no Adobe Ilustrador. Esse é um modelo de utilização de longo prazo mais provável para as ferramentas de AI.

Máquinas de Amor – Quero Ser Uma Maquina by AI.W4rhol

Uma nova série do AI.W4rhol.com foi gerada, inspirada em Andy Warhol e cocriada pelo Midjourney – a utilização do termo “cocriada” para reconhecer que um trabalho foi feito por meio de uma ferramenta de AI é um precedente  importante a ser estabelecido, garantindo transparência e confiança entre criadores e público. Intitulada “Máquinas de Amor”, ela é parte da exibição permanente de arte virtual “Quero ser uma Máquina”. Warhol é um artista americano que dispensa apresentações, mas o que o torna particularmente ideal para a AI é seu interesse em técnicas de produção de massa, como a serigrafia, para criar sua arte. O trabalho de Warhol frequentemente apresenta objetos e imagens do cotidiano, como caixas de sabão em pó Brillo, latas de sopa Campbell e garrafas de Coca-Cola.

Ele reproduziu imagens inúmeras vezes para fazer um único trabalho, como em Nove Marilyns (1962 – uma grade de nove impressões idênticas de uma fotografia de Marilyn Monroe), e produziu múltiplos dos próprios trabalhos. Sua abordagem fala sobre cultura de consumo e mídia de massa nos anos 1960. Ao fazer isso, desafiou as noções sobre o que a arte poderia ser – não precisava ser uma pintura única ou uma tiragem limitada de gravuras produzida por um mestre impressor. Em suma, qualquer um poderia se tornar um artista usando a tecnologia, e a arte poderia proliferar. A obra de arte poderia se tornar comercial, e objetos produzidos comercialmente poderiam alcançar preços normalmente associados apenas à fine art.

No momento, tudo isso é tão novo e extraordinário, que o interesse e a beleza daquilo que o software pode gerar capturaram a imaginação do mundo. Mas novidades se desgastam rapidamente, enquanto a tecnologia permanecerá por muito tempo. Trata-se de uma questão de como o mundo irá se acostumar a utilizá-la. Como Holz diz, “Não significa que vamos parar de imaginar. Carros são mais rápidos que seres humanos, mas não significa que paramos de andar”.

Imagens unicamente digitais têm seu espaço. Elas são uma categoria de arte – mídia sintética – que funciona para sites e para o compartilhamento em mídias sociais e pode funcionar para logotipos, por exemplo. Elas podem ser monetizadas e colecionadas como NFTs. Mas não substituem a arte feita à mão pelo homem, à maneira de Aristoteles, que descreve a grande arte como sendo de qualidade (ou seja, que demonstra habilidade artística), bela e interessante. A Arte AI pode ser bela. Ela é interessante no momento, sobretudo pelas razões aqui discutidas – o fato formidável de um computador ser capaz de criar esse tipo de obra, e a estupefação frente à tecnologia que tornou isso possível. Mas não é “de qualidade” no sentido tradicional, porque essa “qualidade” se baseia no reconhecimento humano da habilidade demonstrada por outros seres humanos no processo criativo.

Os pensadores da Grécia Antiga (particularmente os atenienses) têm sido influenciadores das artes desde a redescoberta de seus textos durante a Renascença. Aristoteles é um deles, mas Platão é, talvez, ainda mais importante para a história. A história da Caverna de Platão é bem aplicável aos metaversos. Ele escreveu em sua Teoria das Formas que “o mundo material não é o mundo “real”; em vez disso, a realidade existe, de fato, além do nosso mundo físico”. Em A Caverna, Platão utiliza a analogia de que nossa experiência como seres humanos na Terra é apenas uma sombra da realidade de fato. Ele imagina indivíduos amarrados no fundo de uma caverna, de costas para a entrada. A luz entra na caverna, projetando sombras da realidade do lado de fora na parede da caverna. Essas sombras são tudo o que podemos ver e tudo o que jamais conhecemos, de forma que, para nós, trata-se da “realidade”. Essa analogia inspirou o filme Matrix e diversos outros trabalhos. Ela se torna ainda mais relevante à medida que a realidade virtual hoje pode parecer tão realista quanto a própria realidade. Como escreveu o filósofo Will Buckinghan, “A Teoria das Formas é uma maneira de pensar sobre a relação entre duas coisas. De um lado, existe um mundo desordenado e caótico que acessamos por meio de nossas experiências sensoriais. De outro, existe um mundo de ideais que acessamos por meio de nosso intelecto”. Platão utiliza o termo “ideal” significando não “o melhor possível”, mas a “ideia” de algo. Mencionei o que vem à cabeça de uma criança quando se pede que ela pense em um gato. A imagem que ela visualiza é seu gato “ideal”. Talvez não corresponda exatamente a nenhum gato que ela viu na vida real, mas pode ser um amálgama de vários gatos. É como as imagens que o software de AI produz. Se você pedir à AI por um gato, não obterá uma réplica precisa de uma imagem de gato existente online, mas um gato “ideal”, uma nova imagem que combina as bilhões de imagens de gato existentes online.

Existe também a “aura” – descrita pelo teórico Walter Benjamin em seu famoso ensaio “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica” – por trás de grandes obras de arte, quando você as vê ao vivo, que não se reproduz quando você vê uma fotografia ou uma versão digital da mesma obra. Nós entramos agora na época da “Arte na Era da Produção por AI”, mas ver uma imagem digital de uma obra produzida a partir do prompt “estilo do teto da Capela Sistina de Michelangelo” nunca será o mesmo que estar na Capela Sistina, virando a cabeça para cima.

Se, há algumas décadas, alguém lhe dissesse que, no seu tempo de vida, você teria um supercomputador no bolso capaz de criar realidades alternativas, você teria dado gargalhadas. Mas foi exatamente isso o que aconteceu. O Grande Gramatizador Automático tornou-se o Grande Artizador Automático. Cabe a nós utilizar esse poder moralmente e para o bem.