A Arte na Inteligência Artificial
As Origens da Arte AI (Parte 2)
por Matteo Moriconi em colaboração com Luiz Velho, Noah Charney e Bernardo Alevato
ArtinAI: INDEX | INTRODUÇÃO | ARTE MANIPULADA DIGITALMENTE - PARTE 1 | ORIGENS DA ARTE AI - PARTE 2 | UM MOTOR PARA A IMAGINAÇÃO - PARTE 3
A Arte AI é uma convergência de cinco tecnologias que existem há décadas na prática e há ainda mais tempo na teoria. Segundo a Revista Wired, “Os geradores de imagem AI nasceram do casamento de duas tecnologias distintas. Uma delas era uma linha histórica de redes neurais de aprendizagem profunda que podia gerar imagens realistas coerentes, e a outra, um modelo de linguagem natural que podia servir como interface para a ferramenta de imagem. As duas foram combinadas em um gerador de imagens baseado na linguagem. Pesquisadores vasculharam a internet por todas as imagens que tinham textos adjacentes, como legendas, e utilizaram bilhões desses exemplos para conectar formas visuais a palavras, e palavras a formas”. A partir do momento em que os softwares “aprenderam” com as imagens que haviam sido “tagueadas” de forma eficaz pelos seres humanos que fizeram seu upload, eles puderam começar a identificar e categorizar suas próprias imagens sem tags ou metadados adicionados por seres humanos.
Se imaginarmos um diagrama de Venn, a Arte AI está no centro da inteligência artificial, da visão computacional, do aprendizado de máquina, da aprendizagem profunda e do processamento da linguagem natural, todos voltados para a criação de arte digital (embora também estejam sendo direcionados a outros propósitos, como a criação de textos coerentes que parecem ter sido concebidos e escritos por um ser humano).
Embora o uso de tecnologia e de computadores seja novo, o processo é, teoricamente, tão antigo quanto a própria arte. Ao pintar a Mona Lisa, por exemplo, Leonardo da Vinci tinha uma espécie de “prompt” quando foi comissionado por Francesco del Giocondo para produzir um retrato de sua esposa, Lisa Gherardini. O prompt poderia ter sido algo como: “retrato renascentista elegante de Lisa Gherardini sorrindo enigmaticamente, em uma paisagem da Toscana, com foco suave”. Leonardo talvez não tenha articulado conscientemente as palavras do prompt, além, é claro, do que foi comissionado por contrato para fazer: retratar Mona Lisa. Mas seu processo de invenzione, termo italiano para a conceitualização de uma obra de arte antes que ela seja criada, incluía atributos e aspectos que eram, essencialmente, prompts. Leonardo manteve sua invenzione em segredo, em sua mente, talvez compartilhando alguns aspectos de seu processo criativo com seus pupilos e assistentes. Mas, fora isso, tratava-se de sua propriedade intelectual. Hoje, um artista de AI pode manter seus prompts em segredo – embora, a princípio, duas obras de Arte AI jamais sejam idênticas.
“La Gioconda” di Leonardo da Vinci (1503).
Mona Lisa by midjourney – prompt: “retrato renascentista elegante de Lisa Gherardini sorrindo enigmaticamente, em uma paisagem da Toscana, com foco suave”
A diferença com a AI é que, hoje, alguém sem nenhuma habilidade artística ou materiais pode recorrer à incrível diversidade de imagens disponíveis online, misturá-las e criar uma nova imagem digital. Os computadores assumiram a outra metade do processo artístico: o disegno. Se invenzione era o termo renascentista para a conceitualização de uma obra de arte, disegno se refere a criação física da obra, com base nos prompts da invenzione do artista.
Nos ateliês dos artistas renascentistas, os “prompts” assumiam a forma das instruções dadas por um mestre (digamos, Leonardo da Vinci) a seus aprendizes e assistentes sobre como produzir coletivamente pinturas que seriam vendidas como originais de da Vinci. Os membros mais apreciados de um ateliê eram aqueles capazes de imitar o estilo do mestre perfeitamente, de forma que não fosse possível saber onde começava o trabalho do mestre e onde terminava o do assistente. Existem muitas versões da Mona Lisa, mas apenas uma é comprovadamente de Leonardo. Outras podem ter sido feitas por ele ou sob sua supervisão em seu ateliê. Outras ainda, como Mona Vanna, conhecida como “Mona Lisa Nua”, são comprovadamente de seus assistentes – esta por Salai. O “prompt” dado a todos os integrantes de seu ateliê era “no estilo de Leonardo da Vinci”. Se imaginarmos a Mona Vanna em termos de AI, o prompt poderia ser “uma Mona Lisa nua no estilo de Leonardo da Vinci”, e o software poderia criar algo como a pintura a óleo de 500 anos de Salai.
Antigamente, isso era normal e apenas tornava-se falsificação e fraude quando alguém de fora do ateliê criava uma obra, sem autorização, no estilo de um mestre, e tentava apresentá-la como se fosse daquele mestre. Existem diversos exemplos, incluindo o do mestre barroco Luca Giordano, que falsificou obras no estilo de Albrecht Dürer e convenceu um de seus patronos a comprá-las como originais de Dürer (conforme descrito em A Arte da Falsificação, de Noah Charney).
Até agora, o disegno – tornar manifesta uma ideia artística – requeria imensas habilidades artísticas, como as de Salai, que treinou com Leonardo. Hoje, requer apenas acesso a um sistema de AI.
É necessário que se compreenda que você, a pessoa utilizando AI e inserindo prompts, não está efetivamente criando arte digital. Seu papel se assemelha mais ao de Francesco del Giocondo, o comitente de uma obra de arte digital. Em vez de pagar a Leonardo 100 scuti ou o que quer que ele cobrasse, você paga uma pequena taxa de assinatura ao Dall-e ou outro site similar de Arte AI. A AI pega emprestadas ideias para invenzione em milhões de imagens em seu banco de dados, com base no prompt inserido. E a AI também pega emprestadas as habilidades dos criadores originais daquelas imagens, criando uma imagem inteiramente nova, reminiscente daquelas que correspondem à combinação inserida em seu prompt.
Embora não substitua os artistas, a Arte AI democratizou a criação de imagens digitais que podem ser bonitas e interessantes. Elas serão tecnicamente originais, únicas, nem cópias nem falsificações. São úteis e, a partir de agora, o criador/prompter pode deter seus direitos autorais, usando-as como quiser, por exemplo, em histórias em quadrinho, capas de livro ou logotipos. A democratização significa que qualquer pessoa, mesmo sem habilidades artísticas ou verba para comissionar artistas e ilustradores, pode “criar” imagens de seu interesse.
“La Gioconda” by midjourney – prompt: “Mona Lisa no estilo Picasso” generated after many generations
À medida que povoamos a internet com mídia sintética, produzindo cada vez mais Arte AI, que é incluída no banco de dados de imagens online – antes exclusivamente alimentado por imagens produzidas por humanos –, o resultado será uma enorme quantidade de mídia sintética sendo realimentada no banco de dados, fundindo-se ao “ruído”. Isso significa que a nova Arte AI será, cada vez mais, baseada em criações prévias de AI, em vez de criações humanas. Como será essa AI no futuro e em que será diferente daquilo que produzimos hoje, quando a quantidade de imagens feitas por humanos dentro do ruído ainda é infinitamente maior que a quantidade de mídia sintética? Dependendo do seu ponto de vista, pode ser que isso polua o ruído com amostras ruins. Mas como? Em algumas décadas, pedir a um prompt por “Mona Lisa no estilo de Picasso” fará com que a AI se atenha a imagens sintéticas do “estilo Picasso”, em vez de imagens digitais de uma pintura de Picasso, e use aquelas imagens para produzir a “Mona Lisa no estilo Picasso”. O resultado pode ser significativamente menos parecido com o estilo de Picasso, uma vez que o prompt estará buscando referências em criações de AI no estilo Picasso. Como precaução contra isso, os desenvolvedores de AI poderiam “fixar” como pontos de referência primários para os prompts as imagens originais dos artistas em questão, de forma que as gerações futuras que insiram o prompt “estilo Picasso” de fato recebam Picasso como ponto de partida, e não a vigésima geração de criação sintética de AI – sendo as 19 imagens anteriores baseadas em imagens de AI “estilo Picasso”, cada uma gradativamente com menos do estilo de Picasso. Esse é o momento para evitar a “contaminação” do ruído com a mídia sintética. As principais plataformas de AI estão cientes desse problema e, espera-se, tomarão medidas para preveni-lo.
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